NO CAOS DA GESTÃO PÚBLICA E DO SUS, OS HOSPITAIS FILANTRÓPICOS TAMBÉM SÃO VÍTIMAS

Limitar as entidades filantrópicas apenas como instituições de caridade nos tempos atuais, é contradizer a Constituição e não reconhecer a prestação de serviços de saúde à população

 

Por: Kátia Rocha – Presidente da Federassantas

Quando o assunto é hospitais e Sistema Único de Saúde é comum pensar nas conhecidas “santas casas”, onde a maior parte das pessoas, em algum momento, já recebeu algum tipo de atendimento. Estas instituições são muitas vezes confundidas com os hospitais públicos, apesar de se tratarem de entidades de natureza completamente diferente, razão pela qual é importante esclarecer e munir a Sociedade de conhecimento para que discursos vazios e demagógicos não deturpem uma das maiores conquistas do SUS no Brasil.

Um hospital sem fins lucrativos é uma pessoa jurídica de direito privado, que se organiza sob a forma de uma associação civil ou uma fundação. Na primeira, o gênese da instituição está ligado à vontade do seu grupo criador, que é dirigida a determinada finalidade. Já no caso das fundações, sua criação decorre da vinculação de determinado patrimônio a alguma finalidade específica. O traço comum a ambas reside na vedação que é imposta pelo Código Civil quanto à exploração de finalidade econômica.

A Saúde Pública, na Constituição de 1988, foi estruturada sobre os conceitos de universalidade, integralidade e gratuidade, ou seja, um sistema de saúde disponível para todos, completo e absolutamente gratuito, não dependendo de qualquer contribuição do usuário para garantia de atendimento. Como facilmente se percebe, a diretriz fundamental para a criação do SUS é a atenção ao cidadão, razão pela qual a participação da comunidade possui um relevante papel na organização do SUS, que se apresenta sob a forma de uma rede de ações e serviços organizados de maneira regionalizada e hierarquizada que, se tomados em conjunto, refletem a noção de unicidade do Sistema.

Coerentemente com o princípio da livre iniciativa consagrado pelo texto constitucional, a Constituição estabeleceu a livre atuação da iniciativa privada na execução dos serviços de saúde, permitindo que esta atuasse de forma complementar à rede pública na consecução das ações e serviços próprios do SUS. Mais do que isto, a Constituição concedeu às instituições filantrópicas e sem fins lucrativos preferência sobre as demais para esta finalidade.

Portanto, quando se tratam dos hospitais privados sem fins lucrativos (o que inclui as entidades filantrópicas, as santas casas e as fundações) é preciso entendê-los tanto a sua origem quanto a sua estruturação e funcionamento. É sob a forma destas entidades (instituições civis, com origem no seio da comunidade) que a sociedade possui a oportunidade de participar efetivamente do SUS, atuando no controle, fiscalização e execução dos serviços de saúde. A sociedade representa a origem e o propósito do Sistema Único de Saúde: é sob esta perspectiva cidadã que um hospital sem fins lucrativos deve ser compreendido na atualidade.

A noção de caridade presente na origem destes hospitais embora indiscutivelmente nobre, é incapaz, nos dias de hoje, de lhes garantir condições mínimas de sustentabilidade. O volume e a complexidade dos atendimentos prestados por estas instituições, que terminam por absorver toda a demanda excedente da rede pública de saúde, é absolutamente inconciliável com uma estrutura não profissional, fundada unicamente no altruísmo dos seus idealizadores.

A relevância dos hospitais sem fins lucrativos pode ser demonstrada pela participação dessas instituições na oferta de leitos ao SUS e também pela quantidade de procedimentos realizados. Atualmente 68,3% de todas as internações geradas para pacientes que dependem do sistema público de saúde em Minas Gerais, ocorrem em Hospitais Filantrópicos, que disponibilizam 58,9% do total de leitos SUS do Estado, e ainda, na atenção ambulatorial, essa atuação representa 49,9%.

De fato, muito embora a Constituição imponha expressamente ao Poder Público a obrigação de garantir acesso universal e igualitário em ações assistenciais, a estrutura própria do Estado é notoriamente insuficiente para tanto, deixando para os filantrópicos esta difícil e custosa tarefa. Deste modo, se, por um lado, os hospitais não mais podem se dedicar exclusivamente à caridade, prevaleceu, por outro lado, a imposição da prestação de serviços de saúde sem finalidades lucrativas.

A ausência de finalidades lucrativas não significa que o hospital não busque maximizar suas receitas e minimizar seus custos, funcionando de modo sustentável. Eventuais resultados positivos, embora cada vez mais raros no cenário dos filantrópicos, implica no seu reinvestimento na própria instituição, para a consecução das suas atividades. A distribuição de lucros é expressamente proibida. Diferentemente do que se verifica com as grandes empresas farmacêuticas, por exemplo, os hospitais não buscam extrair nenhuma espécie de vantagem da doença. O alvo da sua atenção é a cura, a recuperação do doente.

Assim, em um hospital sem fins lucrativos não há objetivo de lucro ou tampouco de recebimento de alguma espécie de vantagem pela “exploração” dos serviços de saúde. Os valores recebidos em contrapartida aos atendimentos prestados são integralmente reinvestidos em suas próprias atividades, em um constante processo de tentativa de equilíbrio das suas contas.

É exatamente esta fragilidade financeira (a Tabela Nacional de Procedimentos do SUS, base para esta remuneração, não sofre reajustes lineares há anos, não conseguindo fazer frente às despesas efetivas geradas com os respectivos atendimentos) que permite o uso desvirtuado dos hospitais por terceiros inescrupulosos, especialmente do meio político.

São comuns os casos onde um hospital é estrangulado financeiramente em razão de divergências políticas, penalizando a população em geral e, especialmente, o usuário do SUS. A retenção e o atraso injustificado nos repasses das verbas que são devidas às instituições por força dos atendimentos prestados são usualmente empregados como instrumento de pressão, para finalidades absolutamente ilegais.

O funcionamento do Sistema Único de Saúde sempre esteve atrelado ao cumprimento de normativos que garantissem àqueles que se dedicam à execução das suas atividades uma remuneração justa e digna, até mesmo como forma de evitar o uso político do Sistema. Não sem motivo, existem diversas leis voltadas especificamente a garantir o equilíbrio entre as despesas geradas com os atendimentos prestados à população e as receitas respectivamente recebidas do Poder Público.

Inadmissivelmente, contudo, não se tem qualquer notícia do cumprimento, pelo Ministério da Saúde, do comando inserido no artigo 26 da Lei Orgânica da Saúde, a Lei Federal n. 8.080, de 19/09/1990, que dispõe quanto à necessidade de que os padrões de remuneração dos serviços prestados no âmbito do SUS sejam orientados pelos respectivos demonstrativos econômico-financeiros, de modo a respeitar a necessária noção de equivalência entre prestação e contraprestação, indispensável para fins da sustentabilidade econômico-financeira sem a qual as finalidades perseguidas pelo SUS restarão comprometidas.

Do mesmo modo, os contratos entre o Poder Público e os hospitais que atuam de forma complementar ao SUS não são objeto de reajustes financeiros que deveriam, ao menos, fazer frente às perdas inflacionárias: os preços, em regra, não recebem qualquer espécie de reajustes regulares, especialmente anuais. Os hospitais conhecidos como filantrópicos despontam, portanto, como herdeiros de uma situação fática completamente injusta e ilegal, que precariza a qualidade dos serviços e impõe desafios por vezes insuperáveis aos gestores hospitalares.

A Federação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos de Minas Gerais – FEDERASSANTAS – tem buscado conscientizar a sociedade de que os hospitais filantrópicos, da mesma forma que os equipamentos de saúde da atenção primária e secundária, não são sustentáveis apenas com recursos oriundos da esfera federal, pautados na Tabela Unificada de Procedimentos do Ministério da Saúde. Quanto maior o nível de dedicação dessas instituições ao SUS, maior é a necessidade de se estruturar um financiamento que agregue valores àqueles previstos na Tabela Nacional. O modelo de remuneração por produção, aliado ao flagrante déficit de valores fixados pelo Ministério da Saúde, há muito se revela insustentável.

As conseqüências da fórmula atual se materializam diariamente sob a forma do crescente e contínuo endividamento das entidades filantrópicas, muitas das quais já atingiram o limite da sua capacidade de absorção de prejuízos. Trata-se de um cenário perverso, onde os custos do desequilíbrio econômico e financeiro terminam por ser integralmente repassados para as instituições de saúde, que, por sua vez, recorrem às instituições financeiras em busca de algum fôlego que impeça o fechamento das suas portas, realidade que, infelizmente, é observada com freqüência cada vez maior no Brasil, atingindo indistintamente hospitais de grande, médio e pequeno porte.

As associações e fundações sem fins lucrativos só terão sua existência assegurada, como instituições essenciais à efetivação do SUS, que nasceram da vontade sublime da sociedade, se as questões que aqui foram brevemente apontadas forem verdadeiramente enfrentadas com profissionalismo, planejamento e financiamento adequado.  E que a sociedade saiba lutar e apoiar estas instituições que ainda representam um dos poucos legados da democracia cidadã e verdadeiramente participativa no Brasil.

Artigo publicado no jornal O Tempo na edição de hoje:

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